Ada Lovelace, Grace Hopper, Karen Sparck Jones, Radia Perlman. Você pode até não conhecê-las por nome, mas a contribuição dessas mulheres na tecnologia foi responsável por mudar o rumo da nossa história. Se, hoje, não conseguimos imaginar a nossa vida sem um computador é por causa delas.
Ada Lovelace criou o primeiro algoritmo da história em 1843, muito antes de existir uma máquina que pudesse processá-lo. Grace Hopper soma títulos como pioneira, foi ela que programou o primeiro computador digital e também foi uma das criadoras do COBOL (Common Business Oriented Language), linguagem usada até hoje no processamento de bancos de dados comerciais. Karen Sparck Jones esteve envolvida na criação de um conceito que é a base do que hoje são os sistemas de busca e localização de conteúdo e a espinha dorsal de companhias como o Google. Radia Perlman é a criadora do protocolo STP (Spanning Tree Protocol) e considerada a “mãe da internet”.
Mesmo com feitos tão importantes, de mulheres na tecnologia, essas histórias parecem curiosidades porque pouco se fala sobre as mentes brilhantes por trás dessas inovações. Mais curioso ainda é o fato de serem histórias dominadas pelas mulheres em um meio que é majoritariamente masculino. Se ampliamos a discussão sobre a participação feminina nas mais diversas esferas da força de trabalho, os números revelam que ainda há um longo caminho para ser percorrido.
Um estudo da Brookings Institution reconheceu que a participação das mulheres na área de STEM (sigla para Science, Technology, Engineering & Mathematics) está abaixo dos 30% e é ainda mais rara quando se fala em posições de gerência ou liderança. No Brasil, a realidade não é muito diferente. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, apenas 20% dos profissionais que atuam no mercado de tecnologia da informação são mulheres.
A engenheira eletrônica Vanda Scartezini atua na área há mais de 30 anos e viu sua candidatura a uma vaga na Telebrás ser negada pelo presidente pelo simples fato de ser mulher. Era meados da década de 70 e o Brasil passava pelo período da ditadura militar.
O presidente da companhia, na época, era um general e, segundo Vanda, apesar de ser uma pessoa aberta, seguia a risca os padrões militares. Ele só aceitou conhecê-la depois de muita insistência de um outro diretor da Telebrás e, mesmo contrariado, aceitou dar uma chance para Vanda. Em menos de dois meses, ela já havia sido promovida à coordenadora de uma divisão. “O curioso é que, anos depois, quando eu assumi a Secretaria da Tecnologia, no Ministério da Indústria e do Comércio, em 1995, ele foi a primeira pessoa a me ligar para me cumprimentar”, revela.
Com uma carreira permeada por diversos prêmios, publicações científicas e especializações, Vanda atua, hoje, como consultora em TICs, Internet e Propriedade Intelectual, é do presidente do conselho curador da FItec (Fundação para Inovações Tecnológicas), faz parte da ABRANET (Associação Brasileira de Provedores de Internet) e é fundadora da DNS Woman Institute, uma instituição de capacitação e network entre mulheres que estão envolvidas com o ambiente da internet. “Nós temos mais de 400 mulheres ao redor do mundo em 68 países. Nosso objetivo é estimular negócios entre elas e incentivar mais mulheres a entrarem nessa área”, destaca.
Quando Camila Achutti passou em Ciência da Computação, na Universidade de São Paulo (USP), em 2010, não imaginava que seria a única da sua sala. “Só caiu a ficha no primeiro dia de aula. Curiosamente, era dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher”, conta.
Sua grande inspiração para entrar na área não foi nenhuma dessas mulheres citadas no início da reportagem, mas sim seu pai, que aprendeu programar ainda jovem e ditava os códigos por telefone. Camila lembra que muitas vezes ficava admirando seu pai ditar código em COBOL.
Para ela, uma língua totalmente desconhecida que magicamente resolvia problemas. “Na época, eu não tinha noção, mas isso mudou drasticamente a minha visão de mundo. Eu sempre achei que programação era linguagem, que era um novo meio de comunicação”. E foi assim que ela passou a se interessar pela área. “Na minha casa, computador era para todo mundo. Como éramos só eu e minha irmã gêmea, não tinha distinção do que era de menino e o que era de menina. Eu cresci e não tinha a menor ideia que tinha escolhido uma profissão que poucas meninas se interessavam”, ressalta.
Quando foi impactada por aquele cenário na faculdade, entendeu que precisava falar sobre isso e decidiu criar o blog Mulheres na Computação. “Queria mostrar que tecnologia era muito legal, que tinham mulheres atuando na área e que programar era um superpoder. Queria, de alguma forma, motivar outras meninas e mostrar que elas também podiam fazer isso”. Além disso, o blog vinha para preencher em Camila uma necessidade de se fazer pertencer. “O blog se chama Mulheres na Computação e eu era apenas uma menina aprendendo computação. Era uma forma de me empoderar”, afirma.
O grande gargalo que percebeu na graduação foi que ela entrou na faculdade sem saber programar, enquanto todos os meninos já sabiam. “Eu via todo mundo estudar para tirar 10 na prova e eu tinha que estudar muito mais para tirar 6. Só que ninguém te conta isso, você chega lá e começa a pensar “talvez eu não seja boa nisso”, “talvez isso não seja para mim””.
Isso acontece, de acordo com Camila, porque ainda tem uma barreira para as mulheres chegarem à tecnologia. “Você começa a ler sobre programação e os exemplos que têm são todos relacionados à Star Wars, pôquer, eu nem sei as regras do pôquer. De alguma maneira, a gente criou esse estereótipo tão forte do que é de menina e o que é de menino, como se isso fosse muito antagônico, separado, mas não é. Existe essa diferença de conhecimento, porque meninas, em geral, não reconhecem que elas são capazes de fazer aquilo, ninguém fala isso para elas, elas não vêem outras meninas fazendo e é óbvio que elas não podem fazer algo que nunca viram”, ressalta.
Além de ser uma das fundadoras da consultoria em inovação Ponte 21, Camila Achutti criou uma plataforma de educação, a Mastertech, para ensinar tecnologia para meninos e meninas. “Nós temos 70% de alunas mulheres. Não por sorte, mas por trabalho duro, porque existe um esforço do nosso lado para trazer essa menina. Naturalmente, ela não vem”. Uma das estratégias usadas por Camila é a empatia. Ao invés de chamar um curso básico de “Introdução à Programação”, na Mastertech, ele se chama “Programação para não programadores”. Além disso, todos os textos de divulgação tentam mostrar que aquele espaço é destinado para todos que querem aprender, mesmo que nunca tenham ouvido falar em código.
Mulheres na tecnologia e na liderança
Enquanto as mulheres preenchem 30% das posições de trabalho na área de tecnologia, um estudo do Linkedin, feito no ano passado, mostrou que, em cargos de liderança, elas não ocupam nem 20% das vagas. Mesmo sendo uma parcela pequena, a notícia não é ruim. Se comparado com cenários anteriores, o setor de tecnologia foi o que mais evoluiu em contratações, com um crescimento considerável de mulheres trazidas para ocupar cargos de liderança.
Para Alessandra Bomura, VP de Tecnologia da Informação da Telefônica, os números refletem um problema cultural. As meninas são menos estimuladas a se interessar pela tecnologia com brinquedos e atividades e, portanto, demonstram menos interesse na hora de escolher a profissão. “Como as posições de alta liderança são um funil, é apenas uma consequência ter menos mulheres executivas em tecnologia. Eu mesma, em alguns processos para contratar diretores para a área de TI, não encontrei sequer candidatas mulheres para entrevistar. No caso da Vivo, a área de tecnologia é muito equilibrada. Na vice-presidência de TI somos em 11 executivos, sendo 5 mulheres”, revela.
Na companhia, as discussões sobre gênero e diversidade tem sido prioridade, assim como o compromisso de promover a equidade de oportunidades.
A Vivo foi, inclusive, a primeira empresa do setor de telecomunicações a aderir ao Pacto para Empoderamento da Mulher, pela ONU Mulheres, e ao Movimento Mulher 360. “Esses fóruns demonstram que não é fácil reverter esses números, não há fórmulas. Mas, sem dúvida, isso passa por uma compreensão das barreiras que afastam ou atrapalham a maior presença de mulheres em tecnologia e também nas posições de liderança, das mudanças nas organizações para que tenham mais flexibilidade para as pessoas conciliarem suas necessidades pessoais com as profissionais e também criem ambientes mais acolhedores e com mais suporte para o desenvolvimento dessas profissionais”, destaca.
Um dos grandes desafios das mulheres é conciliar os papéis de executiva com a maternidade e as atividades da vida pessoal. “Nesse sentido, o que eu sempre fiz foi pedir muita ajuda a todos ao meu redor, em especial ao meu marido, que assumiu muitas vezes responsabilidades que, em geral, são vistas mais como femininas, como fazer supermercado e tarefas domésticas ou buscar os filhos na escola. Acredito que leva alguns anos para entendermos que, por mais que sejamos dedicadas e competentes, não somos ‘mulher maravilha’ e não damos conta de tudo sozinhas”.
Para Alessandra, isso não é fácil, mas é possível. “Quando eu escolho ser CIO (Chief Information Officer) de uma empresa líder em telecomunicações como a Vivo, eu escolho trabalhar muitas horas, viajar bastante e estar sempre disponível. Por outro lado, eu tenho uma oportunidade quase única de muita realização profissional, aprendizado, crescimento e reconhecimento. Acredito que o amadurecimento nos faz menos ansiosos, mais resilientes e isso ajuda muito. Além disso, eu tenho bastante disciplina para não abrir mão do que é importante para mim e sinto que a minha vida é equilibrada e coerente com o que eu amo fazer”, conta.
Para se obter esse equilíbrio, é importante que as empresas que recrutam essas profissionais entendam esses desafios e desenvolvam ações e projetos que ajudem as mulheres a deixarem “todos os pratos rodando”. Isso demanda novas políticas e mudanças no dia a dia dos colaboradores. “Estamos implementando na Vivo a adoção de mobilidade, ou seja, estimulando as pessoas a trabalharem uma vez por semana em home office”, revela Alessandra. Além disso, ela elenca outras medidas adotadas pela companhia, como:
- Linguagem inclusiva nas divulgações de Recrutamento e Seleção internas e externas para atrair mulheres, observando vieses inconscientes e como a descrição da vaga será interpretada.
- Processos que visam garantir candidaturas de mulheres nas vagas tradicionalmente masculinas e que ao menos uma mulher concorra às vagas de liderança.
- Participação em feiras de Recrutamento e Seleção específicas para o público feminino.
- Inclusão do tema “Liderança Feminina” na Semana do Autodesenvolvimento, evento aberto para todos os colaboradores, que oferece palestras e outras ações e que tem como objetivo compartilhar o conhecimento e experiências como aprendizado.
- Lançamento do Womens Age, um movimento inédito no Brasil para ampliar a participação de mulheres em startups.
Mudança na base
Não tem como falar em mais representatividade sem envolver a educação nesse processo. Além de mais oportunidades no mercado de trabalho, é preciso incentivar jovens meninas a se interessarem pela tecnologia e perceberem que são capazes de fazerem isso. Na ETEC Pirituba, uma escola técnica estadual localizada na zona oeste da capital paulista, dos 900 alunos, 75% deles são meninos. “Existe essa barreira que começa desde o ensino fundamental, onde os próprios professores dizem que as meninas são ruins em matemática. Eu encontrei alunas que achavam que nunca seriam boas, e eu dizia que não, que elas podiam conseguir. Precisamos eliminar essa cultura que diminui as meninas na escola e isso tem que começar pelo professor. Nós temos que ajudar as meninas a subirem os degraus para que estejamos todos no mesmo degrau”, destaca Eliane Leite, diretora da ETEC.
Professora de matemática, ela conta que quando assumiu a direção da escola, em 2014, se deparou com um cenário majoritariamente masculino nas salas de aula. “Percebi que elas achavam que não eram boas com números e eu comecei a desenvolver projetos para despertar o interesse dessas meninas pelas exatas e pela tecnologia”, conta. Além de incentivar a participação delas em competições científicas, Eliane procura trazer mulheres da área para compartilhar suas histórias. Uma forma das meninas enxergarem que se existem profissionais que já fazem isso, elas também podem fazer.
O esforço tem dado certo. Entre os vários prêmios já conseguidos pela ETEC em disputas científicas, um em especial levou um grupo de alunos, formado por 5 meninas e 2 meninos, à Índia para uma competição internacional de matemática. Eles foram selecionados para representar a escola depois de um excelente desempenho na Olimpíada Internacional Matemática sem Fronteiras, que estabelece uma competição entre escolas do mundo todo.
Para Eliane, aproximar esses alunos de mulheres que estejam trilhando caminhos nas mais diversas áreas é muito importante para a representatividade. “Aqui na escola, por ser diretora, mulher e negra, eu senti um grande preconceito. Precisei provar coisas que não fariam um homem provar. Então, eu busco reconhecimento sim e sei que posso ser um instrumento de mudança”, ressalta. Ela lembra que um dia um aluno chegou até ela e falou emocionado que nunca havia tido uma diretora negra e que aquilo era muito importante para ele. “Você percebe que acaba inspirando outros jovens, que eles passam a te olhar de outra forma. É a mesma coisa com as meninas, elas se sentem empoderadas. Olham para você e pensam: eu também consigo chegar lá”, diz.
Foi esse mesmo cenário que incentivou a professora Cláudia Ribeiro, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN) e duas ex-alunas, Suzyanne Oliveira e Nayara Rocha, a criarem o projeto Code Girl, que tem como objetivo incentivar a participação feminina no mercado de trabalho de TI.
As poucas meninas que ingressam na área, acabam desistindo no meio do curso. Em pesquisas, elas identificaram que o desencorajamento familiar era um dos principais obstáculos para a inserção de meninas essa área. Desde então, elas vêm promovendo uma série de ações e eventos para fomentar a discussão sobre os desafios enfrentados por essas mulheres e como estão fazendo para superá-los.
“Queremos que elas acreditem que elas podem ser e fazer o que quiserem e o grande diferencial é que nós entendemos que um projeto de inclusão não pode excluir. Então, nós chamamos os meninos para que eles também entendam as dificuldades que as meninas passam”, explica Claudia.
Elas já perceberam que houve uma aumento significativo do número de meninas nos cursos. Hoje, elas representam 30% dos alunos, enquanto até um tempo atrás não chegavam nem a 10%. “Eu acredito que quando você acolhe os meninos e as meninas, eles aprendem a ser uma equipe, e isso é uma grande riqueza. Infelizmente, algumas discussão de empoderamento feminino parece, muitas vezes, nos colocar em oposição ao homem, mas não é isso. Tem que ser de igual para igual”, comenta.
Code Girl
Para Claudia, a diversidade traz riqueza de observação e de habilidades. “Se você começa a tratar diferentemente o que é para mulher e o que é para homem, isso só limita e acaba atingindo os meninos também. O estereótipo é cruel. Então, nós temos que trazer o debate, a discussão, o diálogo. As meninas precisam se apropriar do seu próprio desenvolvimento e os meninos também”, reflete.
O que podemos identificar é que há um avanço mais qualitativo do que quantificativo, ou seja, mesmo com um debate mais aberto sobre o assunto e com mais mulheres na tecnologia, os números ainda revelam que há um longo caminho a ser trilhado. Por enquanto, o que essas histórias nos mostram é que muitas mulheres estão levando a sério a famosa frase da pioneira da tecnologia, Grace Hopper, de que “é mais fácil pedir perdão do que permissão” e provando que lugar de mulher é onde ela quiser, inclusive, na tecnologia.
Por: Karina Constancio, jornalista para a PARAR Review